“ABUNDÂNCIA” E VULNERABILIDADE: FOMENTO, CRIAÇÃO E CIRCULAÇÃO DAS ARTES NEGRAS ENTRE 2016 E 2019

Durante mais de três décadas, a chamada arte afro-brasileira – ou seja, parte do acervo de obras de artistas negros dos séculos 18 e 19, de pré-modernistas e modernistas (pós-1888 à década de 1950) até os contemporâneos (da década de 1960 até nossos dias) – esteve ligada à pessoa do artista e curador Emanoel Araujo, responsável por apresentar esses nomes ao grande público, democratizar o acesso e salvaguardar suas memórias e feitos artísticos. Araujo também reedita textos clássicos sobre arte e artistas negros entre os quais: O quadro do Sr. Firmino Monteiro (1882), de Machado de Assis; As bellas-artes nos colonos pretos no Brazil: a esculptura (1904), de Raimundo Nina Rodrigues, ou O negro brasileiro nas artes plásticas, de Clarival do Prado Valadares (1968). Em 2016, Tadeu Chiarelli, então diretor da Pinacoteca do Estado de São Paulo, realizou a mostra Territórios: artistas afrodescendentes no acervo da Pinacoteca, justa homenagem a Araujo, primeiro (e único) diretor negro do museu que no próximo mês de dezembro completa 115 anos. Na ocasião, obras de alguns artistas já conhecidos, como Rosana Paulino, Paulo Nazareth, Jaime Lauriano, Flávio Cerqueira, Rommulo Vieira Conceição e Sidney Amaral (1973-2017), foram adquiridas aumentando no acervo a presença de artistas negros. Contemporânea ao golpe de Estado que retirou Dilma Roussef da presidência, a exposição esteve longe de abarcar a quantidade de artistas desse segmento artístico que, nos últimos cinco anos, cresce em diferentes partes do país e demanda o reconhecimento e a visibilidade necessária à circulação de seus trabalhos.
Entre 2016 e 2019 uma série de exposições parece indicar uma “abundância” inédita na cena cultural brasileira. Essa mudança decorre da pressão crítica do meio artístico negro organizado, principalmente no teatro. Apesar de ainda muito desfavorável, a sensibilidade em torno da importância das artes negras cresceu, como mostram alguns exemplos de exposições e ações culturais realizadas principalmente em São Paulo.
Nesse sentido, há razões para comemorar: em 2019 Rosana Paulino aumentou o grupo de artistas negrxs da Galeria Mendes Wood, em São Paulo, que já representa Paulo Nazareth, Sonia Gomes e Antônio Obá. Este último expôs na Galeria Candido Portinari, na UERJ (Universidade do Estado do Rio de Janeiro), em 2016, com curadoria de Roberto Conduru. No ano seguinte Conduru assinou Negros indícios: performance vídeo fotografia, na Caixa Cultural da Praça da Sé, em São Paulo, onde estiveram reunidos os trabalhos de Antônio Obá, Ayrson Heráclito, Caetano Dias, Dalton Paula, João Manoel Feliciano, Moisés Patrício, Musa Michelle Mattiuzzi, Priscila Rezende, Renata Felinto, Rommulo Vieira Conceição, Rubiane Maia e Tiago Sant’Ana.
Em 2019, o Coletivo Trovoa reuniu mulheres negras e não brancas em âmbito nacional e fez duas exposições: A noite não adormecerá jamais nos olhos, realizada na Baró Galeria, em São Paulo, com curadoria de Carollina Lauriano, e Sob a potência da presença, que aconteceu no Museu da República (RJ). A mostra teve curadoria de Keyna Eleison e trouxe o trabalho de 14 artistas mulheres da Rede NAMI, coordenada por Panmela Castro. No mesmo ano o antropólogo Hélio Menezes assinou Campo minado, individual de No Martins, na Baró Galeria. Menezes, Ayrson Heráclito e Lilian Schwartz, aliás, fizeram Histórias afro-atlânticas, no MASP/Instituto Tomie Ohtake (2018), considerada a melhor exposição daquele ano pelo The New York Times. Fabiana Lopes, que em 2015 curou Tramas, individual de Lídia Lisboa, na Galeria Rabieh, e Igor Simões, são curadores convidados da Bienal do Mercosul de 2020, cuja abertura física foi interrompida por causa da pandemia de Covid-19. A exposição PretAtitude − Insurgências, emergências e afirmações na arte afro-brasileira contemporânea, idealizada por Claudinei Roberto da Silva, estaria hoje em sua sexta remontagem na rede SESC-SP não fosse a pandemia de Covid-19. Claudinei assinou também a curadoria de Entre o azul e o que não me deixo/deixam esquecer, primeira individual da artista Juliana Santos, realizada pelo Paço das Artes e que foi realizada no MIS-SP (2019). Daniel Lima fez a curadoria de Agora somos todxs negrxs? (2017), exposição coletiva realizada na Associação Cultural Videobrasil e que exibiu o genial curta Alma no olho (1974), de Zózimo Bulbul (1937-2013), ao lado de obras dos artistas Ana Lira, Ayrson Heráclito, Dalton Paula, Daniel Lima, Eustáquio Neves, Frente 3 de Fevereiro, Jaime Lauriano, Jota Mombaça, Luiz de Abreu, Moisés Patrício, Musa Michelle Mattiuzzi, Paulo Nazareth, Rosana Paulino e Sidney Amaral.